Turbulências Caóticas

Ana Cardim



A título de prólogo creio ser importante esclarecer que o discurso que aqui apresento se desenvolve através de uma estrutura tripartida. Numa primeira parte atenderemos à problemática do processo estético contemporâneo e às possibilidades de uma abordagem teórico-crítica especializada (ou disciplinada) frente a esse mesmo processo. Numa segunda parte farei um exercício de reflexão sobre as prácticas artísticas que emergem actualmente do espaço da joalharia contemporânea e/ou sobre as prácticas artísticas que utilizam – actualmente – este território como fundo referencial no seu processo criativo. Finalmente, irei defender e situar o meu trabalho como artista nos parâmetros expressos ao longo da narrativa precedente.



I parte


Plataformas flexíveis e sincronização espontânea



Na presente era da informação parto do princípio que o leitor terá acesso fácil e imediato a umas dessas próteses que dão acesso à Internet. Começo pois por pedir que – como “ponto de partida” – visualizem uma experiência realizada pelo Grupo de Física e Dinâmicas Não Lineares do Departamento de Física da Universidade de Lancaster: http://www.youtube.com/watch?v=W1TMZASCR-I

Partimos daqui mas, de momento, não me deterei em nenhum tipo de considerações sobre o que acabam de ver. Retrocedo antes para dar início à redacção do presente artigo e, mais à frente, regressarei ao “ponto de partida” como “ponto de chegada”.


Em 1997 o filósofo americano Arthur Danto afirmava que na arte contemporânea tudo pode ser arte, sendo que tudo vale (Anything Goes). Para Danto, o facto de algo ser ou não ser arte depende sobretudo da aceitação do objecto artístico no seio da intersubjectividade pública do “mundo da arte” – no domínio da convenção arte, onde uma “atmosfera teórica” é aquela onde se poderá distinguir o que é arte e o que não é.

Mas já 20 anos antes o filósofo Nelson Goodman alertava para a impertinência da questão: o que é arte?, abrindo a discussão pela qual foi acusado de simples nominalismo. Goodman tinha bem claro que o mesmo objecto poderia ser entendido de distintas maneiras de acordo com as circunstâncias da sua recepção e, perante esse carácter circunstancial do objecto artístico, sugeria que aquela pergunta fosse substituída por outras duas: quando há arte? e o que faz a arte?

Contemporâneo de Danto, Gerad Vilar afirma (na sua obra Razões da Arte) que pensar a arte de hoje implica entender que o relato pré-existente partia de um discurso unidireccionado – como se fosse um grande rio de etapas sequenciais e evolutivas que iria desaguar no mar da grande verdade teleológica –, o qual deixou de ter sentido desde o final das vanguardas. Vilar entende que a teoria estética terá de renovar os seus pressupostos já que o suposto rio se abriu num delta infinito e aparentemente descontrolado nos seus múltiplos braços. A arte transpira por todas as partes desse imenso delta e esta situação obriga a uma revisão de narrativas e de abordagens em relação ao que insistimos em chamar Arte. Estamos, pois, em processo de um repensar global.

Gerard Vilar questiona-se, no entanto, sobre quais as razões e quais os critérios que pautam este processo. Na sua opinião, tudo é permitido na arte contemporânea, mas nem tudo vale o mesmo, já que há coisas que valem mais do que outras. O autor defende que existe uma razão sem fundo que flutua no fluxo dos acontecimentos e que a arte contemporânea, apesar do seu pluralismo caótico, não é um mundo de pura irracionalidade. A sua sugestão aponta para um relativismo moderado – e esta será também a posição que irei defender.

Os referentes da cultura disciplinar – herdada pela filosofia iluminista do século XVIII –impelem-nos, por conveniência e costume, a categorizar os vários domínios artísticos. Porém, as artes já não estão divididas e segmentá-las de novo seria um retrocesso. Neste sentido, as categorias cruzam-se, renovam-se, tingem-se, contaminam-se, confrontam-se e dissipam-se, reivindicando uma essência (a-)categórica. O aparente caos em que nos encontramos revelou (pelo choque) a necessidade de procurar novas formas de percepcionar as artes.

Partindo da questão de Goodman, prossigo e questiono: o que fazem as artes? Penso que uma perspectiva abrangente permite captar um padrão comum entre todas as expressões ou veículos da função estética: comunicar e gerar ideias (e/ou) potenciar modos de pensar.

As artes operam, pois, como janela cultural que potencia construções de sentido contribuindo, deste modo, para a nossa própria concepção do mundo e da forma como o habitamos. É obvio que estas construções são subjectivas e circunstanciais, pois dependem das condições verificadas em cada leitura (tanto as que são intrínsecas ao sujeito que a frui e/ou à obra, como as que possam parecer extrínsecas a ambos).


Regressando ao “ponto de partida” do presente artigo, a experiência que puderam observar através do vídeo proposto é simples: numa primeira fase, em cima de uma mesa rígida, temos cinco metrónomos cujos pêndulos oscilam em ritmos dessincronizados; numa segunda fase, os mesmos elementos são colocados sobre uma plataforma flexível. Ao fim de pouco tempo os ponteiros dos metrónomos oscilam em total sincronia. 

Apesar da aparência simplista desta experiência não existe nenhuma equação matemática nem nenhuma fórmula que a consiga traduzir ou prever. No entanto, ela pode exemplificar a designada teoria do caos e da complexidade.

Tal teoria defende que se deve analisar como se vinculam os diferentes elementos independentemente das suas características individuais, sendo que é na interacção entre os diferentes elementos constituintes de um sistema complexo – e aparentemente caótico – que se pode encontrar um padrão e uma ordem que não se sabe bem de onde saem e que não se conseguem prever, mas que existem. Esta intensidade variável não funciona num sistema fechado. Para que este fenómeno seja possível, os elementos têm de ser lidos numa plataforma flexível comum que irá permitir o ajuste sincrónico entre as suas diversidades.

O que interessa não é tanto analisar cada elemento de per si (em sistema fechado e singular) mas sobretudo observar o modo como estes elementos díspares interactuam uns com os outros (em sistema aberto e plural). Só desta forma se podem alcançar uma sincronia e uma ordem natural e espontânea entre elementos aparentemente desconexos ou inquietos. Salvaguarde-se que por natural não entendemos o mesmo que normal (condicionado por normas).


Neste sentido, as “turbulências caóticas” que permeiam as práticas artísticas actuais – em todas as suas vertentes e disparidades –  podem ser reveladoras de um sentido comum através da percepção e aceitação da sua interdependência essencial. A questão da multidisciplinaridade não tem porquê ser um problema; ela é, pelo contrário, uma chave perceptiva.

O momento actual é altamente propício a alterar o modus operandi que nos serve de suporte ao entendimento da arte contemporânea. Esta mudança passa, sobretudo, por superar um pensamento estritamente analítico-sintético – que decompõe o todo em partes para voltar a reuni-las depois. E acrescentar-lhe um pensamento sinérgico-sistémico –  que opera pela cooperação de vários sistemas recursivos para uma visão ampla e desperta à interacção das suas múltiplas partes. Desta forma poderemos alcançar o terceiro tipo de pensamento, que será o pensamento crítico-criativo – que examina e avalia a estrutura existente mas que produz novas ideias que a podem e/ou devem modificar.

O facto das possibilidades dispararem em múltiplas direcções e não convergirem num único sentido não implica que as disciplinas se anulem. Elas terão de integrar e interactuar entre si num sistema pluridisciplinar operando a partir sua especificidade mas segundo uma plataforma flexível comum.

Ao invés de pautarmos a revisão de pressupostos teóricos ao sabor dos contornos metamorfoseantes e híbridos de que a arte actual se reveste em cada expressão pseudo-singular, penso que é mais frutuoso entender o modo como cada uma dessas expressões inter-actua com as demais expressões do sistema complexo que queremos tratar: o das arteS. Comecemos pois por acrescentar-lhe um S que contemple a multiplicidade do acto criativo e a coexistência de distintos pontos de vista como valor intrínseco ao complexo sistema do processo artístico.



II parte


Territórios e fundos referenciais do processo criativo


Retomamos aqui o propósito anunciado de reflexão sobre as prácticas artísticas que emergem actualmente do espaço da joalharia contemporânea e/ou sobre as prácticas artísticas que utilizam – actualmente – este território como fundo referencial no seu processo criativo.


Depois do discurso precedente não terá sentido forjar aqui qualquer discurso de análise relativo à especificidade da joalharia contemporânea ou à defesa da sua integração como disciplina no sistema geral das artes. Não me vou deter pois em questões sobre o que é ou não uma jóia, o que a define ou em que tipologias se pode dissecar. O usual conceito de jóia não consegue abarcar nem justificar muitas das prácticas artísticas que emergem do território da joalharia contemporânea bem como toda uma produção estética que a utiliza como referente. Haveria que questionar as definições existentes e criar novos conceitos que fossem realmente operativos, já que quando um adorno corporal é mais do que um adorno de embelezamento passa a ser outra coisa. Por outras palavras: quando estes objectos transgridem esteticamente a função de adorno corporal comum adquirem um valor outro.


Não obstante o adorno corporal ser ele próprio um lugar– tal como uma pintura, uma escultura, ou uma instalação, um vídeo, etc. –, ele apresenta a particularidade de habitar um lugar móvel: o corpo.

O corpo é o seu lugar de suporte, é o seu lugar de comunicação que, por sua vez, a transporta para distintos lugares. Neste sentido, o adorno corporal pode ser entendido como lugar de dialéctica entre a esfera íntima e a esfera pública, já que quem o transporta vem do seu espaço privado expondo-se com ele no espaço público. Esta mobilidade confere-lhe um carácter privilegiado de comunicador social. Ressalvo desde já que esta mobilidade por si só não coloca este adorno – ou qualquer outra tipologia objectual –, sob a designação de objecto artístico, da mesma forma que uma pintura também não alcança esse estatuto pelo simples facto de um quadro estar pendurado na parede. Há que entender que o adorno de puro embelezamento corporal continuará a existir, do mesmo modo que sempre existirá pintura decorativa ou “arte” sem comprometimento reflexivo ou social.

Apesar do adorno corporal ser – à partida –, o conceito que maior destaque terá nas práticas artísticas subjacentes à joalharia contemporânea, é importante assinalar que este não é – de modo nenhum – o único resultado possível de encontrar no espaço da sua vasta produção estética. O espaço da joalharia contemporânea está repleto de situações transdisciplinares através do recurso a múltiplos outros referentes: escultura, fotografia, vídeo, performance, instalação, etc.


Aceitemos portanto que o estatuto de objecto artístico não está exclusivamente submetido à técnica que o veicula ou à sua aparência formal (embora essas vertentes o possam integrar). Existe um terceiro factor determinante que nos remete para o modo como se constrói o seu carácter inteligível ou, dito por outras palavras, o seu significado. Desta forma, o estatuto de objecto artístico está também vinculado a uma inteligibilidade estética que coloque em questão a inteligibilidade comum; a uma noção de consenso. Apesar de partilhamos estruturas e schemata semelhantes, as razões da arte exigem um acrescido trabalho de interpretação – um exercício de compreensão onde a verdade absoluta ou a linearidade não têm lugar.

Se a intersubjectividade da construção do significado estético é já um dado adquirido no âmbito das várias teorias da recepção, neste momento existem mais e mais plataformas em jogo nesta intersecção. É nesta ambiguidade e não-transparência que as artes se engendram como portal aberto para o conhecimento do mundo, permitindo desta forma a concepção de novos sentidos e/ou possibilidades de desenvolvimento para essa mesma realidade.


Neste sentido, sugiro que a reflexão sobre o actual panorama da joalharia, parta de uma consciência flexível e perceptiva da sua transversalidade em relação às demais prácticas artísticas contemporâneas. Quanto à questão da escala reduzida com que estes objectos se apresentam usualmente, parto do pressuposto de que na eficiência da experiência estética todas as escalas são válidas – desde o mais pequeno ao maior – e abraço, assim, o título da presente publicação BYPASS: o infinitamente pequeno e o infinitamente grande.


Entendendo que a totalidade das prácticas artísticas contemporâneas coexistem numa mesma plataforma podemos detectar – pelo menos – duas “situações de intercepção” que contribuem para uma sincronia referencial durante o processo criativo.

Como primeira “situação de intercepção” podemos entender que – por questões biográficas e formativas – o artista possa estar realmente inserido no espaço estabelecido pela joalharia e desenvolver um trabalho emergente face à delimitação disciplinar pré-existente. Entre muitos outros, são exemplos deste caso: Ted Noten (Lady K Bag) Benjamin Lignel (Getting Old Sucks), Teresa Milheiro (Survival kit, Anti-existência), Cristina Filipe (Mistério I | Rosário I, Blessure I, "...Il est tout plat, et il a une émeraude, la plus belle que j’aie jamais vue..."), Lauren Kalman (Hard Wear - Tongue Gilding), Julia deVille (Trophy Mouse, Fallen), Tiffany Parbs (etched, blister-ring, extension, clamp ), Emmanuel Lacoste (Flesh), Jane Gowans (Hold, Strangle) e Kelly McCallum (Do you hear what I hear). O meu próprio trabalho como artista – que irei referir na terceira parte deste artigo – insere-se no contexto dos casos acima referidos.

Como segunda “situação de intersepção”, entendemos que o artista possa trabalhar usualmente com distintos veículos expressivos e que pontualmente recorra ao referente da joalharia pelo simples facto de encontrar neste território um conceito ou uma técnica que lhe pareçam adequados à realização de uma obra concreta. São exemplos deste caso: Damien Hirst (For the Love of God), Jill Magid (Auto Portrait Pending, The Salem Diamonds, The Kissmask), Catarina Campino (Esposas de Matrimónio-Wedding Cuffs),  Silvia Giambrone (Eredita) entre diversos outros exemplos.


Ambas as referidas “situações” interceptam esta plataforma comum onde as fronteiras se estendem cada vez mais: o lugar das artes. Mais do que exemplos que corroborem a posição teórica que pretendo aqui defender, estas obras existem realmente e são elas que – ao invés – requerem a elaboração do presente discurso. Aguardo a oportunidade de futuras publicações onde possa comentar profundamente cada um destes casos específicos e outros similares que certamente irei descobrindo durante o período de investigação no mestrado que frequento actualmente (Pensar L´Art D´Avui, Mestrado em Estética e Teoria da Arte Contemporânea, Universidade Autonoma de Barcelona).



III Parte


Micro-dispositivos de intervenção social


No meu trabalho como artista optei por explorar sobretudo a já referida mobilidade do adorno corporal desenvolvendo-lhe o potencial de reconversão em espaço de sociabilidade e/ou lugar de discussão. Os objectos gerados por este processo criativo são deste modo entendidos como micro-dispositivos de interacção que permitem gerar diálogos dinâmicos – criar e recriar opinião crítica na esfera pública. Estes objectos transgridem esteticamente a função de adorno corporal comum adquirindo um valor político. Constituem, neste sentido, um veículo de intervenção social que visa catalizar uma reterritorialização dos significados e propor novas vias de construção de sentido face a uma contemporaneidade predominantemente urbana, nas suas variadíssimas vertentes e consequências sociais e ambientais.


Uma das inflexões mais reveladoras entre a Modernidade e a Contemporaneidade parece ser uma espécie de retorno do sujeito que antes se encontrava desaparecido ou anulado pelas estruturas de representação. Naturalmente, todos os sujeitos de todas as épocas continuam a pertencer a uma mesma espécie: o ser humano em ambas as suas vertentes social e cultural.

Se a Contemporaneidade é marcada pela proliferação de não-lugares e pela desagregação do colectivo (no sentido bem analisado por Gilles Lipovesky no seu Era do Vazio), tal deve-se ao facto dela padecer de uma enfermidade de efeitos estruturais. A regeneração não passa, como é óbvio, pelo isolamento de cada sujeito em si mesmo, antes passa pela reconstrução e reinvenção dos modelos possíveis para um estar-juntos integrado no lugar comum.


Encontramo-nos numa fase perigosa – que se perpetua há já várias décadas – visto que é fácil acusar a falência das esferas institucionais como pretexto para renegar o sistema de valores por elas estabelecido. A circunstância actual denuncia uma enorme crise de valores que tanto pode conduzir ao colapso total do sistema como pode, pelo contrário, ser optimizada como oportunidade regeneradora do mesmo sistema.


É importante compreender que o sujeito contemporâneo deve – mais do que nunca –, desenvolver os seus próprios processos de conduta moral, política, estética, religiosa (entre outros). Penso que esta subjectividade não de deva confundir com hedonismo e desagregação provocada pela visão utópica de uma real independência entre os distintos sujeitos. Os contornos propostos pela Contemporaneidade potenciaram a emergência de um colectivo social doente. Para que seja possível regressar ao estado de pré-enfermidade, penso ser absolutamente necessário que os processos individuais sejam mediados e validados na sua interacção com os demais sujeitos ... com a Sociedade. Partindo de uma base flexível, essa interacção pode revelar um padrão de entendimento comum.

Estamos perante a situação ideal para repensar os protocolos e fundar novos mecanismos de sociabilidade. Não se trata de um beco sem saída mas sim de uma abertura de fronteiras onde as diferentes subjectividades se cruzam e se fecundam de modo híbrido. Não estamos perante uma limitação mas sim de uma libertação. Embora essa liberdade por si só não chegue. Ela necessita de ser pautada por uma consciência colectiva de tolerância razoável.


O meu trabalho parte destas razões – a redefinição objectiva e programática de um novo protocolo social e humano, fundado na acção e activado e catalizado por dispositivos de raiz estética.







 


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