Athenea Digital. número 7- Primavera 2005

Espada, Arcadi (2003)
Diarios. Madrid: Espasa.



Beatriz Marocco
MAROCCO@icaro.unisinos.br

 

Um espaço diferente de diálogo

Ao Enrique

O que foi dito por Charles Baudelaire (1897), Karl Kraus (1924) e Arcadi Espada (2003) foi dito isolada e desordenadamente em tempos diferentes, mas desde posições distintas os três se ocuparam de um modo de objetivação jornalística que sempre andou a cavalo do capitalismo e que veio se constituindo lentamente ao longo de quase três séculos. Há entre os três algo que os reúne, ou reúne aquilo que foi dito e permanece na dimensão do sono, e que pode ser despertado pelo olhar artificioso e incompleto do crítico em um espaço diferente. Neste espaço, do livro, do documento, não há cartografia nem tempo, nem a lógica da frase ou da ciência, mas sim a vasta extensão da história em que se pode organizar e manter os enunciados, que fazem parte do que Foucault denominou “arquivo”, em constante processo de atualização. No “arquivo”, desfaz-se a espessura artificiosa do tempo dos homens em que as notícias e os livros foram publicados. É no interior deste sistema, que não pertence ao domínio de nenhum dos três autores, que se constituirão as relações enunciativas que não estão condenadas à morte, como os seus autores, nem ao concreto das frases ditas e que podem vir a fazer sentido no agora. É neste espaço virtual do agora, no sistema do “arquivo”, que o analista engendra uma regularidade entre a heterogeneidade de discursos dispersos em outras épocas. Neste espaço diferente, Arcadi e Baudelaire falam sobre o jornalismo e os acontecimentos jornalísticos em fragmentos que o primeiro resumiu em anotações diárias de suas leituras de jornal e práticas de observação e Baudelaire deixou desordenados em um projeto autobiográfico inacabado. Kraus, o antijornalista, dedicou ao jornalismo alguns fragmentos em forma de aforismos em Sprüche und Wudersprüche.

O jornalismo “é um eufemismo”. Tudo parece dito com palavras precisas e limpas, segundo Arcadi, com as palavras necessárias para descrever a situação. Mas com palavras atenuadas. Na linguagem “atenuada” (eufemística) com que o sistema jornalístico configura a realidade, “o leitor escorrega pelas palavras como se elas fossem um tobogã, sem mais perguntas e nunca chega a pensar que resvalará quatromil vezes” (p. 94). A relação dos jornais com a vida, disse Kraus, entrando neste jogo discursivo, “coincide mais ou menos com a coincidência que há entre as cartomantes e a metafísica. O cabeleireiro conta as novidades enquanto deveria se limitar a pentear os cabelos. O jornalista demonstra-se habilidoso quando deveria se limitar a contar as novidades. Ambos são ambiciosos” (K. Kraus, p. 75). Desde uma perspectiva baudelairiana, os jornais apresentam “um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, atos impudicos, torturas, crimes dos príncipes, crimes das nações, crimes dos particulares, uma embriaguez de atrocidade universal” (p. 154). Baudelaire reagia à leitura: “É impossível ler uma gazeta de qualquer dia, mês ou ano sem encontrar em cada linha os signos da mais espantosa perversidade humana, ombro a ombro com as mais surpreendentes declarações jactanciosas de honestidade, bondade, de caridade e com as afirmações mais descaradas relativas ao progresso e a civilização” (p. 154). Mais um passo neste modo de apresentar o real; Arcadi se pergunta, então, por que tantas matanças contra civis são “danos colaterais”? por que tantas mortes de imigrantes que tentam entrar ilegalmente na Espanha se perdem no gotejar diário e vão se tornando familiares no decorrer da semana? Porque, responde ironicamente Baudelaire, os jornais são dirigidos por seres que podem ser às vezes seres especiais, mas que não são nunca divinos. “São pessoas sem personalidade, seres sem originalidade, nascidos para a função, quer dizer, para a docilidade pública” (p. 151). Arcadi duvida que esse modo de atenuar os acontecimentos que passam na realidade tenha apenas um responsável: “Será que o leitor resistiria a uma escritura que se detivesse em cada cadáver, que investigasse as suas vidas, as circunstâncias da morte e o seu desejo, uma escritura que, enfim, dera a cada morto um enterro humano, caixão e sepultura?” (p. 94). E conclui que “O europeu é um bom tipo”, mas que não poderia ler sobre estes cadáveres a não ser na linguagem atenuada que o jornalismo lhe oferece (p. 95).

Arcadi desfila em Diarios um inventário de peças como as narradas anteriormente, que fazem a mecânica do jornal funcionar: o modo jornalístico de objetivação do homem em “silhueta” (p. 76), o “interesse econômico” que aproxima cada vez mais as notícias da publicidade (p. 71, 73), o jornalismo de declaração (p. 70), o eufemismo que atenua a realidade (p. 21) e a fast truth (p. 68). Sob o olhar de Arcadi, a verdade jornalística tem a consistência da carne mal passada, do conhecimento rápido; ela deve ser apresentada sempre au point porque quando a investigação jornalística se estende e dá mostras de que pretende chegar ao “centro da terra onde as temperaturas são infernais”, a recorrência dos detalhes e a repetição tendem a contrariar a lógica dos meios e a aborrecer, a cada passo que o jornalista dá encontra “um número maior de amigos da propriedade” e “a verdade desaparece dos meios” (p. 51). Karl Kraus já havia se voltado contra a natureza do jornalismo capitalista no início do século passado e para romper com a falta de concisão, a forma descuidada e a pressa de fechar edições diárias, ele renunciou à obrigação do jornal de aparecer regularmente e “desperiodicizou” o Die Fackel.

Referências

BAUDELAIRE, C. (1999). Mi corazón al desnudo y otros escritos póstumos. Madrid: Valdemar.

KRAUS, K. (2003). Dichos y contradichos. Barcelona: Editorial Minúscula.